quarta-feira, 22 de abril de 2009

Dia mundial do livro / Livro vale mais do que um trocado

Em comemoração ao Dia Mundial do Livro, 23 de Abril, o Blog Corujão posta uma reportagem reveladora sobre este objeto mítico, o livro, do jornalista Rodrigo Ratier publicada pela revista Nova Escola e que está repercutindo muito em toda mídia.


Rodrigo encheu uma caixa de livros, colocou dentro do carro e saiu pelas ruas de São Paulo. A cada parada num semáforo, sempre que um pedinte ou menino malabarista se apoximava ele oferecia livro em vez de dinheiro. O resultado foi surpreendente!

E mais: entramos em contato com o Rodrigo e conseguimos uma declaração exclusiva sobre a experiência dele pelas ruas de São Paulo. Confira tudo agora:

Vale mais que um trocado

Ambulantes, pedintes e moradores de rua não esperam só por dinheiro dos motoristas parados no sinal vermelho. Sem pagar pra ver, eu vi

por Rodrigo Ratier

"Dinheiro eu não tenho, mas estou aqui com uma caixa cheia de livros. Quer um?" Repeti essa oferta a pedintes, artistas circenses e vendedores ambulantes, pessoas de todas as idades que fazem dos congestionamentos da cidade de São Paulo o cenário de seu ganha-pão. A ideia surgiu de uma combinação com os colegas de NOVA ESCOLA: em vez de dinheiro, eu ofereceria um livro a quem me abordasse - e conferiria as reações.
Para começar, acomodei 45 obras variadas - do clássico Auto da Barca do Inferno, escrito por Gil Vicente, ao infantil divertidíssimo Divina Albertina, da contemporânea Christine Davenier - em uma caixa de papelão no banco do carona de meu Palio preto. Tudo pronto, hora de rodar. Em 13 oferecimentos, nenhuma recusa. E houve gente que pediu mais.
Nas ruas, tem de tudo. Diferentemente do que se pode pensar, a maioria dessas pessoas tem, sim, alguma formação escolar. Uma pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, realizada só com moradores de rua e divulgada em 2008, revelou que apenas 15% nunca estudaram. Como 74% afirmam ter sido alfabetizados, não é exagero dizer que as vias públicas são um terreno fértil para a leitura. Notei até certa familiaridade com o tema.
No primeiro dia, num cruzamento do Itaim, um bairro nobre, encontrei Vitor*, 20 anos, vendedor de balas. Assim que comecei a falar, ele projetou a cabeça para dentro do veículo e examinou o acervo: - Tem aí algum do Sidney Sheldon? Era o que eu mais curtia quando estava na cadeia. Foi lá que aprendi a ler. Na ausência do célebre novelista americano, o critério de seleção se tornou mais simples. Vitor pegou o exemplar mais grosso da caixa e aproveitou para escolher outro - "Esse do castelo, que deve ser de mistério" - para presentear a mulher que o esperava na calçada.
Aos poucos, fui percebendo que o público mais crítico era formado por jovens, como Micaela*, 15 anos. Ela é parte do contingente de 2 mil ambulantes que batem ponto nos semáforos da cidade, de acordo com números da prefeitura de São Paulo. Num domingo, enfrentava com paçocas a 1 real uma concorrência que apinhava todos os cruzamentos da avenida Tiradentes, no centro. Fiz a pergunta de sempre. E ela respondeu: - Hum, depende do livro. Tem algum de literatura?, provocou, antes de se decidir por Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
As crianças faziam festa (um dado vergonhoso: segundo a Prefeitura, ainda existem 1,8 mil delas nas ruas de São Paulo). Por estarem sempre acompanhadas, minha coleção diminuía a cada um desses encontros do acaso. Érico*, 9 anos, chegou com ar desconfiado pelo lado do passageiro: - Sabe ler?, perguntei. - Não..., disse ele, enquanto olhava a caixa. Mas, já prevendo o que poderia ganhar, reformulou a resposta: - Sim. Sei, sim. - Em que ano você está? - Na 4ª B. Tio, você pode dar um para mim e outros para meus amigos?, indagou, apontando para um menino e uma menina, que já se aproximavam. Mas o problema, como canta Paulinho da Viola, é que o sinal ia abrir. O motorista do carro da frente, indiferente à corrida desenfreada do trio, arrancou pela avenida Brasil, levando embora a mercadoria pendurada no retrovisor. Se no momento das entregas que eu realizava se misturavam humor, drama, aventura e certo suspense, observar a reação das pessoas depois de presenteadas era como reler um livro que fica mais saboroso a cada leitura.
Esquina após esquina, o enredo se repetia: enquanto eu esperava o sinal abrir, adultos e crianças, sentados no meio-fio, folheavam páginas. Pareciam se esquecer dos produtos, dos malabares, do dinheiro...

Foto: Rogério Albuquerque

CAMINHO LIVRE A cada livro oferecido em vez de esmola, um leitor descoberto.

-Ganhar um livro é sempre bem-vindo. A literatura é maravilhosa, explicou, com sensibilidade, um vendedor de raquetes que dão choques em insetos. Quase chegando ao fim da jornada literária, conheci Maria*. Carregava a pequena Vitória*, 1 ano recém-completado, e cobiçava alguns trocados num canteiro da Zona Norte da cidade. Ganhou um livro infantil e agradeceu. Avancei dois quarteirões e fiz o retorno. Então, a vi novamente. Ela lia para a menininha no colo. Espremi os olhos para tentar ver seu semblante pelo retrovisor. Acho que sorria.

* os nomes foram trocados para preservar os personagens.


Fonte: Revista NOVA ESCOLA, edição 221, Abril 2009, disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/gestao-escolar/diretor/vale-mais-trocado-432764.shtml

Declaração exclusiva de Rodrigo Ratier ao Blog Corujão:

A Tatiane me pediu para escrever um pequeno texto sobre minha experiência na reportagem “Vale mais que um trocado”, relato de um fim de semana em que ofereci livros em vez de dinheiro aos que vinham me abordar em meu carro, nas ruas de São Paulo. A reportagem foi, sem dúvida, a que mais repercutiu em meus 11 anos de carreira jornalística – já são mais de 150 emails em minha caixa postal (alguns ainda infelizmente não respondidos), cerca de 70 comentários no site da revista Nova Escola e três entrevistas em rádio. Algo totalmente inesperado para mim e, creio, uma amostra da importância dos livros e da leitura para um contingente não desprezível de pessoas.
Muitas pessoas me perguntaram se a ideia de doar livros em vez de dinheiro foi minha. Não, não foi. Aqui na redação da Nova Escola, a sugestão foi de nossa coordenadora pedagógica Regina Scarpa, que já desenvolvia atividade semelhante há mais de 10 anos, quando trabalhava em uma escola do Morumbi, bairro em que ela ficou conhecida pelas crianças como a “moça dos livros”. Coube a mim apenas o relato da experiência. Depois, por meio das mensagens que chegaram às minhas mãos, fiquei sabendo de diversas pessoas que realizam atividades iguaizinhas ou parecidas, deixando livros em bancos de praças, imprimindo páginas e deixando disponíveis como cordéis em ônibus, organizando projetos de incentivo à leitura em escolas e associações de bairro. Trata-se de uma ideia, portanto, de muita gente – tive a felicidade de divulgá-la ainda mais.
Também questionaram se não tive medo. Tive, sim. Não foi em todo caso que me senti seguro para abrir o vidro e fazer a oferta (confesso, não sem uma dose de constrangimento, que há bastante preconceito nessa minha atitude). De qualquer forma, sinto-me feliz de não ter sido um medo paralisante, que me impedisse de conhecer tantas trajetórias interessantes e de questionar rótulos. A descoberta de que três quartos dos moradores de rua tem algum nível de instrução foi reveladora de como meu olhar, muitas vezes obliterado pela primeira impressão, não enxerga direito o que a realidade tem para nos mostrar.
Sei que o tema deste texto deveriam ser os livros, mas acho que o maior ganho dessa experiência – pelo menos para mim, mas acho que também para os que foram presenteados – foi o da comunicação. O simples fato de essas pessoas terem sido reconhecidas (mesmo que por um breve instante) em vez de darem de cara com um vidro com insulfilm me parece fundamental. A indiferença é brutal, prima-irmã da solidão. Acho que a vida, sobretudo nas grandes cidades, precisa de pontes que unam os seres humanos. No caso da minha pequena reportagem, fico feliz que os livros tenham sido o alicerce para essa ligação.

Rodrigo.

P.S.: a caixinha de livros continua sempre abastecida em meu carro!

***

Rodrigo Ratier é jornalista formado pela USP e com mestrado em educação pela Faculdade de Educação da USP. É editor da revista Nova Escola e membro da ONG Repórter Brasil.

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Obrigada, Rodrigo!
Continuamos juntos nessa luta!
Esperamos que seu relato inspire muitas pessoas a repetirem esta nobre ação: distribuir livros!
E você aí, leitor, que tal?

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Expediente

Natália Parreiras [Redação, Edição, Assessoria de Imprensa, Parcerias e Co-produção do evento]
Educadora licenciada em Letras pela UFPE.
Tem três livros de poesia publicados e atualmente prepara o quarto e o quinto títulos.
Mais em: http://www.sonatainsone.blogspot.com/

Tatiane Rangel [Idealização e fundação do Blog]
Formada em Comunicação Social/Jornalismo pela PUC-Rio.
Mais em: http://www.sohamsoham.blogspot.com/

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