sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Uma cidade entre versos

A seguinte matéria conta um pouquinho do que aconteceu com uma cidadezinha do interior de São Paulo que ao inserir a poesia em seu cotidiano, inclusive nas escolas, transformou a vida da população. Está na íntegra e foi publicada pela Revista Bons Fluidos de setembro 2008, edição 114.

Vale a pena a leitura!

Uma cidade entre versos
No interior de São Paulo, a população de Dois Córregos celebra a segunda edição de um festival que envolve a cidade com a poesia misturada ao dia-a-dia.

Texto • Murilo Barbosa
Ilustrações • Gustavo Cristófaro

Era noite de Lua cheia, sexta-feira, 13 de junho. Mas, no pátio do Hotel Fazenda Santa Paula, nada de mau agouro. Só as boas energias de cerca de 150 pessoas, que celebravam o prazer da poesia em volta de uma fogueira bem armada, dançando quadrilha e declamando versos – um verdadeiro sarau caipira, encenado por artistas da região. Estava aberto oficialmente o II Festival Internacional de Poesia de Dois Córregos, cidade a 288 km de São Paulo, que levou para o evento apaixonados por imagens e palavras, como a poetisa argentina Graciela Wencelblat, o poeta Arnaldo Antunes, o embaixador Jerônimo Moscardo, presidente da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), do Ministério das Relações Exteriores, e a presidente da Câmara Brasileira do Livro, Roseli Boschini. O Sol caminhava no horizonte e a cidade também se aquecia com recitais, saraus e palestras. Todos pareciam envolvidos em prazerosas conversas literárias, que só terminaram no domingo.

Os versos de autores desconhecidos, aliados aos de consagrados como Guilherme de Almeida, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, declamados no sarau de abertura, encantaram a poetisa Graciela. “Falar de poesia não é comum, lê-la menos ainda, e aqui parece ser uma atividade que faz parte da essência da cidade”, definiu em um castelhano lento e comedido, o mesmo que usou para falar sobre “lo inquietante de la poesia”. “Mesmo que não exista uma demanda social, a poesia não morrerá, pois depende apenas de um impulso sutil, quase espiritual, para que se acenda em quem a produz, quer queira ou não”, arremata a poetisa argentina.

A satisfação de Graciela não é incomum para quem vai a Dois Córregos. Com cerca de 25 mil habitantes e economia baseada na cultura da cana-de-açúcar e macadâmia e na indústria de móveis, o pequeno município (uma rua principal e quatro ou cinco travessas) ousa, no melhor sentido, levar adiante um projeto de inclusão cultural por meio da poesia, envolvendo escolas, empresas, comércio. Ali, todo mundo faz poesia: o cortador de cana, o operário, as mulheres da penitenciária local, o empresário, as crianças, as professoras, o industrial e o aposentado.

O projeto, chamado EntreVersos, foi idealizado pelo empresário e poeta “dois-corrrrrguense” (a pronúncia é assim mesmo, com erres carregados) José Eduardo Mendes Camargo, 48 anos. Ele, que tem três livros publicados, namorava a poesia desde a juventude, mas só teve coragem de encará-la como um ofício aos 40 anos, já pai de duas filhas e dono de uma carreira de sucesso como fazendeiro, industrial e professor de administração rural da Fundação Getúlio Vargas. “Se o contato com a poesia me fez tão bem, por que não faria a outros?”, comenta Camargo. “Estimular a criatividade pode não ser o suficiente para gerar novos poetas, mas é indispensável para a formação de seres humanos mais críticos e cidadãos íntegros.” A iniciativa deu tão certo e envolveu tanta gente que, por causa dela, nasceu a ONG Instituto Usina de Sonhos (www.usinadesonhos.org.br), em 1995. Por meio de parcerias com o poder público local, a Usina de Sonhos assumiu a missão de transformar a realidade com poesias. Começou com as escolas, treinando professores, que usam os versos em sala de aula e estimulam a expressão desde as séries pré-escolares. Deu certo. A cidade hoje comemora a quarta posição entre os dez únicos municípios brasileiros que ficaram com nível superior a seis no Índice da Educação Básica (Ideb), divulgado recentemente pelo Ministério da Educação (esse índice é o resultado do rendimento escolar e a média de nota dos alunos nas provas do sistema nacional de avaliação básica Saeb e na Prova Brasil. Segundo o Ministério da Educação, o sistema educacional dos países desenvolvidos apresenta número igual ou maior que seis, enquanto a média do Brasil é 3,8). “Com certeza, a atividade com poesia responde por parte desse sucesso, aliada a um bom trabalho das escolas, pois melhora a leitura e o entendimento dos alunos”, explica Rosa Laura Calacina, secretária da educação do município.

Alunos como Luiz Guilherme Pastori, 11 anos, no 6º ano do fundamental, são os maiores beneficiados. Incentivado a fazer poesias desde o 3º ano do fundamental, tem gosto por atividades culturais e costuma ler pelo menos um livro por semana. “Assisto TV, uso o computador, mas também vou ao teatro, toco música e leio bastante”, conta ele, que recitou um poema no festival.

Renato Ventura de Almeida, 10 anos, aluno do 5º ano do fundamental, traz do berço o gosto pela palavra. Na escola, as poesias são trabalhos e atividades e, em casa, o incentivo vem da mãe, a instrutora de auto-escola Rita de Cássia Ventura, 32, poetisa e vencedora de concursos na cidade. “Fico muito feliz que meu filho tenha contato com essa arte na escola”, diz.

O sucesso do EntreVersos se reflete nas ruas de Dois Córregos. Basta caminhar um pouco que o olhar registra poesia em vários lugares. Os muros da biblioteca pública, as paredes de todas as escolas e creches, fachadas de empresas e até a porta da delegacia trazem versos. A rádio da cidade tem um programa em que os moradores lêem suas composições. Uma pausa para o almoço e pronto: um dos restaurantes tem no cardápio o Trivial a Tiago de Melo, homenagem ao poeta amazonense das coisas simples, assim como o prato caseiro que leva seu nome, feito de arroz, feijão e mistura. Se virar a esquina, até o sorvete tem grife: o Vinícius de Moraes, feito de uma combinação de leite em pó e chocolate, faz sucesso. Cotidiano lírico

O cotidiano pleno de lirismo da cidade chamou a atenção do compositor e poeta Arnaldo Antunes, o último dos palestrantes, que se surpreendeu com o envolvimento da cidade com a poesia. “É uma forma de garantir a sobrevivência do gênero no mundo moderno, misturando poesia com coisas do dia-a-dia”, afirmou. “Mais ou menos como em minha obra, em que a poesia e a palavra são o porto seguro de onde eu me aventuro a lidar com novas formas de expressão artística, transformando a poesia.”

Dos canaviais ao redor, também brotam versos. O cortador de cana Edivan Soares Ribeiro, 26 anos, veio de Pindaí, na Bahia, para trabalhar na lavoura. Aluno do 7º ano do fundamental, ele se aventura pelas palavras incentivado pelos professores. “Faço versos quando fico sozinho ou com minha mulher, que corrige os textos e até dá idéias”, conta Edivan, orgulhoso por ter uma de suas poesias nas placas que enfeitam os jardins do festival.

Sua colega no trabalho, a cortadora de cana Ana Lúcia de Souza, 34 anos, mostra como a poesia melhorou sua qualidade de vida. Ela chega a sonhar com fragmentos de poemas, que ajudam a amenizar a dureza do cabo do facão. Versos que ela escreve ou canta enquanto trabalha na lavoura, guardados em um caderno especial. De segunda-feira a sábado, Ana Lúcia acorda às 4h30, viaja cerca de uma hora de ônibus, trabalha no campo até as 15 horas e desembarca na esquina de sua casa – simples, recém-construída e ainda inacabada – às 16h30. Até as 19 horas, tem que tomar conta dos dois filhos e do neto, pôr ordem no lugar, e depois andar algumas quadras até a escola noturna. “Fui incentivada a fazer poesia na aula”, explica Ana, que freqüenta o 8º ano do fundamental. “Gosto de pensar em palavras, fazer combinações e frases bonitas.”

Ao tomar contato com a “veia poética” da cidade, Roseli Boschini, presidente da Câmara Brasileira do Livro, comparou Dois Córregos a Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, que envolveu seus moradores com a leitura e hoje tem um dos maiores índices de livros por habitante do Brasil. Na abertura do evento, ela frisou: “Vocês fizeram uma bagunça aqui na cidade e não há como voltar atrás. Dois Córregos ficará marcada pela poesia”.

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Expediente

Natália Parreiras [Redação, Edição, Assessoria de Imprensa, Parcerias e Co-produção do evento]
Educadora licenciada em Letras pela UFPE.
Tem três livros de poesia publicados e atualmente prepara o quarto e o quinto títulos.
Mais em: http://www.sonatainsone.blogspot.com/

Tatiane Rangel [Idealização e fundação do Blog]
Formada em Comunicação Social/Jornalismo pela PUC-Rio.
Mais em: http://www.sohamsoham.blogspot.com/

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